12.10.10

Era uma mulher

Era uma mulher que chorava um ano depois.

Ou seja: a mulher tinha um acontecimento dramático, angustiante ou apenas triste, mas só um ano depois é que ela reagia como se espera numa destas situações. Com drama, angústia ou tristeza.

A coisa passava-se assim: acontecia qualquer coisa difícil de gerir. As pessoas reagiam. Ela não.

Ficava ali a aguentar-se, a convencer-se que estava tudo bem, que nada tinha acontecido, a mostrar aos outros que não havia motivo para preocupação, animando este ou aquele, não dando grande conversa - afinal, estava tudo bem. Havia até quem a achasse desprovida de emoções e insensível, fria.

Mas isso era só porque não sabiam o que estava para vir.

É que exactamente um ano depois, à mesma hora, mais coisa menos coisa, a mulher reagia.

Imagine-se uma panela de pressão. Sopa a ferver. A sopa vai fervendo. E fervendo. Lentamente. Está tudo calmo na cozinha. E então a panela começa a apitar, o vapor a sair furiosamente, um estardalhaço.

Com a mulher era mais ou menos a mesma coisa.

É claro que no caso da panela de pressão a coisa resolve-se facilmente: desliga-se a panela e o vapor vai saindo pacificamente, até que o silêncio volta à cozinha e talvez se coma a sopa. No caso da mulher não. Animadas por um ano exacto de combustão lenta, as emoções surgiam então descontroladas pela impaciente espera. Era um salve-se quem puder.

Naturalmente, um ano depois, todas as pessoas já se tinham esquecido e ultrapassado a coisa. Restava então à mulher, não só digerir sentimentos fora de tempo, como fazê-lo sozinha. E ainda tinha que lidar com a surpresa e incompreensão de todos.

Imagine-se o seguinte diálogo:
"Estou tão triste."
"Então?"
"Fui despedida."
"Outra vez?!"
"Não. Fez ontem um ano!"
"Mas não estás já a trabalhar?"
"Sim."
"E não gostas do teu emprego?"
"Sim."
"Então porque é que estás assim agora?!"

Pois.

Às vezes era até mais caricato: imagine-se que no mesmíssimo dia em que, um ano antes, se tinha dado o infeliz acontecimento, havia agora um acontecimento feliz. Não calhava nada bem, e as pessoas ficavam até um pouco impacientes.

Uma coisa consolava a mulher: os sentimentos bons eram pontuais e imediatos.

2 comments:

  1. fantástico. adoro estas tuas pequenas histórias. adoro a simplicidade, a peculiaridade, o caricato, mas ao mesmo tempo com tanto significado.

    acho-te genial a escrever.

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  2. Obrigada. :)
    (Ainda que me sinta desmerecedora de tanto carinho!)

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